.

Ética na fotografia: três casos que geraram discussão


Chamados de heróis por levar ao mundo o conhecimento sobre situações de miséria, ou de abutres por ganhar dinheiro com aquilo: a vida do fotojornalista.

Volta e meia os profissionais se veem no centro de discussões sobre ética na fotografia. Ao escolher clicar antes de socorrer uma vítima (pelo menos na imaginação de quem vê a foto), ou deixar de clicar para evitar a exposição de algo dito indigno, são motivo para ofensas pessoais e até generalizada sobre a classe dos fotógrafos.

A importância da fotografia jornalística como ferramenta de conscientização e denúncia é inquestionável. Sem esses olhos o mundo não saberia de atrocidades cometidas em guerras, abusos policiais nas periferias mais distantes ou crises humanitárias em terras que para nós parecem quase ficção. Mas onde o dever profissional deve terminar? Tirar a foto exclui a opção de ajudar ou anula o valor do trabalho?

Além das escolhas pré-clique, também são questionáveis os métodos de pós-processamento. Ajustes básicos de luz e tom sempre foram feitos, mas com técnica e perícia uma cena pode virar outra. Existe um limite entre retocar e transformar totalmente o que a câmera captou naquilo que o editor quer, mas quem define esse limite?

Kevin Carter

Kevin-Carter-abutre

“Struggling Girl”, de Kevin Carter (1993) – foto feita no Sudão foi seu sucesso e ao mesmo tempo, ruína.

 Um dos casos mais conhecidos é o da foto ganhadora do Pulitzer de 1994, do fotógrafo sul-africano Kevin Carter. Um ano antes, seu instinto profissional o fez clicar a cena impressionante da criança no Sudão, severamente desnutrida, prostrada enquanto se aproximava de um centro de ajuda humanitária da ONU. Ao fundo, um abutre observa o que poderia ser sua próxima refeição.

A imagem rodou mundo, como retrato escandaloso da situação em boa parte da África. Ela denunciava a tragédia em todas as cores a quem a via; a visão de quanto o humano estava ali desprovido de qualquer dignidade, abandonado à fome e colocado no papel de mero alimento.

Muitos a viram como genial, a metáfora perfeita da situação no Sudão – publicada no prestigiado The New York Times, rendeu a Carter o prêmio, honra máxima que um fotojornalista pode ter. Mas outros preferiram julgá-lo: estando tão perto da criança, porque não a ajudou imediatamente, em vez de antes fazer um registro? Sua confissão de que observou a cena um certo tempo para ver se o abutre abria as asas – o que lhe daria uma imagem mais forte, com a ave dominadora e grandiosa – tornou as críticas mais contundentes.

Alguns o compararam ao próprio abutre, assistindo a tragédia em busca de recompensa, como o jornal St. Petersburg Times, da Flórida, que publicou: “O homem ajustando suas lentes para capturar o quadro exato de seu sofrimento [da criança, Kong Nyong], poderia muito bem ser um predador, outro abutre em cena“.

Resultado: por ter feito bem seu trabalho e dado ao mundo uma visão fugaz mas icônica daquela realidade, Carter passou a conviver com acusações. 16 meses depois, suicidou-se, deixando um bilhete indicando uma combinação de fatores que o levaram a desistir da vida, entre eles financeiros e traumas absorvidos ao conviver com a miséria humana em seus anos de atividade (além da tragédia no Sudão, registrou horrores durante o apartheid na África do Sul).

Vale notar que a criança não morreu, não foi devorada pelo abutre e nem estava abandonada: segundo fotógrafos presentes e o próprio Carter, a foto foi feita nos arredores de um posto de alimentos, onde estavam seus pais; a pulseira branca no pulso indica que ela já vinha recebendo acompanhamento dos agentes da ONU. Kong Nyong viveu até 2007, quanto morreu “de febres“, segundo a família.

O abutre nem estava tão perto, ou prestes a atacar; os fotógrafos espanhóis José María Luis Arenzana e Luis Davillaque, que fizeram imagens similares, revelaram que Carter usou uma teleobjetiva para criar a ilusão de proximidade entre a menina e o abutre, que estavam cerca de 20 metros distantes. Muitas aves rondavam o local pois nas imediações havia um tipo de aterro sanitário.

Comentários

  • Total Score 0%
User rating: 83.33% ( 6
votes )


Fone (91) 3229-5807 – 3229-1067 Av. José Bonifácio, 2628 – Guamá Belém – Pará – 66065-112